ME DEIXE MORRER EM SEATTLE
VIII
Layne não ficou com Scott, não
poderia ficar naquela casa, partiu, voltou a pé, da mesma forma que chegara,
debaixo de chuva, quando estava no centro da cidade, circulando pelas ruas,
conhecia algumas pessoas, com as quais costumava se drogar, algumas prostitutas
que o adoravam, apesar de nenhuma delas ter estado com ele, elas o amavam, pelo
simples fato de ele sempre ser gentil com todas, e nunca as tratar como vadias,
mas nunca as levava para cama, elas diziam que ele era o anjinho, o carinha
estranho, tão lindo, mas só queria se drogar, nada de sexo, nem com homens, nem
com mulheres, a conversa que se espalhava a boca pequena, era que ele mantinha
uma relação de amor com a irmã, ninguém tinha certeza, mas todos comentavam,
que ela o dominava e o mantinha preso a si, que o rapaz só tinha olhos para
ela, era uma loucura, todo mundo dizia, mas naquele mundo louco que viviam,
nada mais surpreendia, tudo era possível, a loucura naquela cidade parecia uma
regra, a periferia vivia seus dias de maior agitação, nunca antes a
movimentação por aqueles lados havia sido tão grande, o fluxo de pessoas por lá
aumentara consideravelmente nos últimos meses, jovens de várias partes do país
haviam se mudado para cidade, diziam que era por causa do cenário musical, que
havia explodido pelo mundo e algumas bandas de lá eram o maior sucesso por todo
o planeta, isso fez com que os olhos do mundo se voltassem para a cidade e
consequentemente, muitos jovens sonhadores, desejassem viver nesse cenário de
rebeldia e loucura rock n' roll. Isso era bom, para o underground, os negócios
aumentavam, as prostitutas trabalhavam mais. Em contrapartida os crimes e
mortes também aumentavam em proporção equivalente. O consumo de drogas aumentou,
jovens perdidos pelas ruas, bêbados circulando também. Scott achava bom, assim
podia destruir mais facilmente a loucura do fanático, pois na mesma proporção o
fanatismo aumentava, visto que a divulgação de que o demônio estava caminhando
pela cidade e arrebatando almas para o inferno, fez com que a população vivesse
os tempos mais loucos jamais vistos. De um lado o cenário da juventude perdida,
em meio à homossexualidade, e promiscuidade, drogas e perdição, a própria visão
do inferno, do outro, a visão alienada, fanática e violenta dos pregadores e
falsos moralistas, envenenados, a cada dia pelo godsmack, o bispo ia
transformando a cidade num verdadeiro campo da guerra, e sentia enorme
satisfação, queria instalar o caos, para assim mostrar todo seu poder santo, de
destruição do mal. O que ocorria em suas igrejas era grotesco e selvagem,
talvez pior do que qualquer cena vista nas ruas, o mal verdadeiro, estava no
fanatismo cego, na ignorância manipulada, na crença violada com a maldade de um
homem que abusava da sua capacidade de coagir as massas e transformá-los em
ratos assustados, dependentes da santa cura, que na verdade era a destruição.
Era hora de um dos cultos em uma das
igrejas, estava lotada, homens do bispo circulavam sem parar, distribuindo
"a água", no começo de todos os cultos era obrigatório que todos
bebessem a tal água, que era contaminada com o godsmack, o bispo diziam que era
preciso beber água para purificar a palavra, para que todos entrassem limpos, e
iniciassem as orações com as bocas purificadas, por todos o mal do homem estava
em sua boca, os fiéis bebiam afoitos, todos queriam estar puros e serem dignos
dos olhares dos bispo, todos queriam ser escolhidos para subir no palco e
receber a purificação na frente de todos, e ali, enquanto bebiam a água eram
envenenados, durante o culto, a coisa ia
fazendo efeito, a agitação geral ia aumentando, e o bispo ia direcionando as
sessões como quisesse, se queria causar espanto, alucinações coletivas,
histeria generalizada, qualquer coisa, mas o que ele mais gostava, era de
operar o milagre da cura, de fazer as pessoas com deformações decorrentes do
uso da droga, se curassem milagrosamente, coisa que sabia ser possível
ministrando um antídoto, que rapidamente agia, liberando o efeito do corpo e
com ajuda do controle da respiração, fazia a pessoa ir retornando ao normal, um
milagre que ninguém nunca vira, uma coisa tão real. O bispo era aclamado, como
um santo, com poderes vindos diretamente do céu, era o eleito, mesmo quando
agia com violência na frente de todos.
Os fiéis acreditavam que era
necessário, o santo homem sabia o que precisava ser feito, suas mãos e palavras
tinham o dom, ele era especial, sempre agia certo, homem santo.
Mesmo quando em uma das sessões ele
e seus homens espancaram um homem que se recusava a receber a cura, e gritava
que tudo ali era uma farsa, e que o
bispo era um mentiroso, que todos estavam sendo enganados, mesmo quando os
homens do bispo começaram a bater no homem, até que ele ficasse desacordado e
caído no chão, os fiéis acreditaram que quem falava ali era o próprio demônio
que estava dominando aquele pobre coitado, que não tinha mais controle de si, e
que havia sido necessário usar da força para tirar de seu corpo o espírito
maldito que estava querendo destruir o santo homem, aquele homem foi morto
pelos capangas, foi morto ali, no próprio palco, na frente de todos, mas o
santo homem disse a todos que ele estava desacordado porque o diabo quando saiu
de seu corpo, o havia deixado muito fraco, sem condições de voltar a si, e fora
levado embora para ser cuidado pelas santas irmãs do culto, a mais pura
mentira, jogaram o corpo do homem em um incinerador, acabaram com qualquer
vestígio de sua existência, nunca mais se ouviu falar dele, quando foi
questionado em dos cultos, ele contou emocionado aos fiéis, que o rapaz havia
se curado totalmente e resolvera partir para o Texas, arrumaram um trabalho para ele por lá.
A maioria dos cultos tinha sempre
cenas macabras, coisas pavorosas, cenários criados para incitar ainda mais
medo, as pessoas que frequentavam aqueles cultos, em vez de saírem de lá com o
espírito leve e renovado como seria de se esperar, saíam ainda mais oprimidas e
cheias de medo e culpa, mas acreditavam ser assim que as coisas deviam ser
mesmo, o mundo era cruel, então as coisas deviam ser duras, o bispo era um
homem rígido e exigente com seus fiéis, todos acreditavam cegamente que essa
era a única maneira de conseguir salvar o mundo das garras do diabo, que estava
devastando a cidade, o medo que sentiam quando saíam dos cultos, era porque na
verdade seus corações ainda não estavam puros e livres do mal, ainda estavam
cheios de corrupção e lascívia, deveriam confessar ao bispo essas coisas,
porque ainda tinham medo, e se isso ainda acontecia, como o santo homem dizia,
era porque o diabo ainda soprava em seus ouvidos e de alguma maneira, ainda
estavam dando ouvidos, era necessário receber alguma punição, ser castigado,
pagar, prestar contas para tentar a purificação, a libertação do demônio era
muito difícil, ele era tão sedutor, o demônio fazia as pessoas sorrirem e
amarem e sentirem desejos, mas o bispo dizia que tudo isso era errado, e a
única forma de viver corretamente, era em silêncio, com medo, e pedindo para
ser perdoado por todos os pensamentos impuros, era preciso beber a água, para
se purificar, afinal tantas pessoas estavam recebendo o toque do diabo e se
transformando em monstros, era possível ver pelas rua, as aberrações que
andavam, uma coisa pavorosa, as deformidades que o diabo era capaz de causar, e
ainda o número de prostitutas e homossexuais aumentando sem parar, isso também
era obra do demônio, tantos homossexuais, um horror, e diziam que o demônio
tinha um nome e atendia por Scott, e que tinha uma noiva que tinha como amante
seu irmão e um outro homem que ela enfeitiçara com suas artes infernais.
Sessões de exorcismo eram comuns nos
cultos, o bispo adorava fazer seus shows, eram na verdade espetáculos de
aberrações, a plateia gritava em êxtase, de forma alucinada, a histeria era
generalizada, por momentos, nem mesmos os homens do bispo conseguiam conter a
agitação, em geral o bispo mandava que as luzes fossem apagadas começava a dar ordens de comando para que as
pessoas se acalmassem, aquilo sempre funcionava, manipular as massas é uma
coisa simples se você tiver a malícia e a força necessária de comando, e isso o
bispo tinha de sobra, aliada à sua maldade, conseguia controlar o público e
reiniciar os cultos, nesses dias, as pessoas costumavam sair caladas, com medo,
o homem costumava dizer que havia travado uma luta com o diabo dentro da sua
igreja, e o havia expulsado e vencido com seu poder maior, os fiéis crédulos e
ignorantes, sob efeito da drogas, nem conseguiam discernir direto sobre o que
havia acontecido ali dentro, muitos saiam contando fantasias de coisas que
tiravam apenas de suas mentes inventivas, fatos que não haviam acontecido, ou
alucinações decorrentes da água envenenada, era mais deprimente do que qualquer
cenas que pudesse acontecer nas ruas.